Mobilização Social

Há mais de três mil anos, Moisés trouxe do alto da montanha uma mensagem com os princípios que seu povo deveria observar para sobreviver. Eram regras “morais”, visando um convívio humano salutar e construtivo. Entre elas estava a de “não roubar”.

Nossa justiça perdoa os que roubam para matar a fome. Às vezes, o roubo é uma estratégia de sobrevivência, quando se luta desesperadamente para isso, em tempos de desemprego. Há também quem o faça por extrema dependência, por exemplo, da droga. Mas há também motivações menos vitais, como a induzida pelas tentações da sociedade de consumo e sua onipresente publicidade. Ou o desejo de viver melhor do que se vive, ao lado de tanto luxo e ostentação. 
Corrupção é um tipo de roubo. Mas, embora a essência dos atos seja a mesma, essa palavra é mais usada quando se trata do roubo de recursos de propriedade coletiva administrados por governos – ainda que se possa também chamar de corrupto o encarregado das compras de uma empresa que “acerta” sua compensação com este ou aquele fornecedor pela preferência que lhe der, ou a quem nos pergunte que valor colocar na nota para o reembolso de uma despesa, acumpliciando-se conosco por uma gorjeta maior.

No que se refere aos recursos públicos a sonegação de impostos é tão socialmente aceita que é vista com menos rigor. Mas é sempre a mesma coisa – um roubo – que se faz de diferentes maneiras, as mais comuns sendo as “comissões“ ou propinas por favorecimentos, até nas supostamente bem controladas grandes licitações e obras.1
Na corrupção também interfere, e às vezes muito fortemente, outra motivação: a cobiça, sentimento que precede o roubo e sobre o qual Moisés também preveniu seu povo. Ela normalmente evolui para a ganância, que pode se tornar descomunal quando nos “cofres” a serem assaltados se encontram descomunais quantidades de riqueza, como é o caso dos recursos dos governos.

Impunidade

Em 1964, um golpe implantou em nosso país um regime militar, que dizia ter como objetivos acabar com a subversão e com a corrupção. Com o primeiro desses objetivos, o que se pretendia, a mando dos privilegiados de nossa sociedade e dos interesses externos que conhecemos, era bloquear as “reformas” que a esquerda daqueles tempos estava procurando implementar, rumo a uma sociedade mais justa. O segundo – acabar com a corrupção – não era senão um pretexto para prender mais gente, já que é corriqueiro dizer que desde os tempos da colônia ela só progrediu em sua ação deletéria entre nós.

Mas com esse regime político a corrupção ganhou o que mais precisava para se espalhar pelo organismo social: a impunidade. Protegida pelo segredo e pela repressão, ela infectou amplamente o país. Os governos que em seguida se instalaram a viram-na se aprofundar, com o que se tinha aprendido para assegurar a impunidade. O máximo parece ter sido atingido com Collor, eleito com outra bandeira moralizadora – a da caça aos “marajás” – que agravou a corrupção a tal ponto que foi devidamente afastado. De lá para cá ela ficou mais evidente, mas a hipocrisia continuou como se viu recentemente no Senado com seus “atos secretos”, da mesma linhagem dos “decretos secretos” dos militares. 
Com a chegada da “esquerda” ao poder, foram reforçados os órgãos de fiscalização e controle interno e o zelo da polícia. Cada vez mais “esquemas” de corrupção estão sendo descobertos, numa sequência que parece infindável, com a mídia divulgando os amplamente.2 A oposição, por sua vez, em sua luta para retomar o poder, assume o papel fiscalizador que deve ter numa democracia, e não perde nenhuma oportunidade para difundir, por meio da “sua” mídia – que não é diminuta – fatos que desgastem a imagem do governo.

Isso tudo acaba nos dando a impressão de que a corrupção está cada vez maior, o que pode não ser verdadeiro, uma vez que o que aumenta de fato é nosso conhecimento de cada vez mais atos de corrupção. Mas como por outro lado não se tem tanta notícia de uma eventual diminuição da impunidade – antes pelo contrário – está crescendo a pressão e o controle social. Com isso, o combate à corrupção está se tornando um objetivo imprescindível em todo programa político, mesmo que farisaicamente e em capítulos acessórios.

A gravidade do mal

Ora, se o aumento dos roubos leva a um sentimento de insegurança, o aumento da corrupção – ou do conhecimento dela – leva a um sentimento de indignação, porque ela tem vários agravantes. O primeiro é de que os que roubam não estão do lado de fora, mas sim dentro do cofre que é de todos. Por serem exatamente os encarregados da sua guarda e administração, nos fazem achar que o roubo só vai parar quando o cofre se esvaziar. O segundo é o de que esses ladrões se apoiam na impunidade herdada da ditadura. E o terceiro é o péssimo exemplo do alto da pirâmide de poder da sociedade. A sabedoria popular nos diz que o exemplo sempre vem de cima. Os corruptos incentivam todos os tipos de roubo pela sociedade afora. Um representante político que rouba libera seus representados para fazerem o mesmo.
Apesar de bem vestidos e sempre sorridentes, sua violência indireta equivale à dos que roubam à mão armada: com poucas ações matam muito mais gente, ao desviar recursos que poderiam estar sendo utilizados para salvar vidas nos serviços públicos de saúde, em transportes seguros, com obras e medidas de prevenção contra desastres como os ocorridos nas últimas chuvas ou numa educação que dê perspectivas aos jovens etc. etc. etc.3

Para complicar, há o mal que a corrupção faz à continuidade democrática. Com tantas informações sobre corrupção somos levados a pensar que o conjunto do sistema político está inteiramente infectado. Com isso, ele se desacredita, se torna realmente difícil separar o joio do trigo. No senso comum esse sentimento atinge até a esquerda que se diz ética. Todos os políticos – qualquer que seja sua filiação partidária – são incluídos na categoria pejorativa dos “eles”, aninhados como máfias nos diferentes governos e parlamentos.4

Ora, a democracia, por mais capenga que seja e ainda esteja eivada de procedimentos autoritários, é o único quadro institucional que permite que se resolvam os problemas econômicos, sociais, ambientais e políticos de uma sociedade. Democracia não se reduz a eleições. Ela é debate livre, busca de saídas consensuais, controle social, cidadania ativa. Sua continuidade é necessária porque só dentro dela podemos aperfeiçoá-la. Deus nos guarde da memória curta dos que têm saudades de uma pretensa “ordem” que só os militares sabem impor…

A indignação como condição de saída

Dentro desse quadro, bendita seja a indignação da sociedade. A situação só mudará efetivamente por intervenção de baixo para cima e de fora para dentro, ou seja, pela ação de uma sociedade indignada. Muita coisa pode ser feita a partir dos centros de poder, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Mas a luta é insana, porque nesses centros as células essenciais já estão muito corroídas. “Cortar na própria carne” ou “não legislar em causa própria” são expressões muitas vezes repetidas que mostram a dificuldade da empreitada.

Mas como já ficou para trás o receio tolo dos anos 1980, de que o combate à corrupção desqualifique politicamente quem nele se empenhe, como se fosse um “moralismo” ingênuo5, e como os riscos que corre o país com a persistência do mal já não escapam a ninguém, multiplicam-se no Brasil de hoje, em todos os níveis de ação cidadã, as iniciativas para combater a corrupção.

Uma delas é a Articulação Brasileira Contra a Corrupção e a Impunidade – ABRACCI6, lançada no Fórum Social Mundial de Belém do Pará, em janeiro de 2009: ela quer enfrentar a corrupção mas também, direta e explicitamente, a impunidade. Com o apoio dos comunicadores que já “acordaram” para sua responsabilidade, ela interconecta múltiplas iniciativas, dos pactos de integridade de empresários que querem se livrar da pecha de “corruptores” – quando financiam campanhas eleitorais e “molham” as mãos de servidores públicos – às caravanas de cidadãos que percorrem esses nossos interiores para denunciar corruptos. Estruturada horizontalmente sob a forma de rede, acima de partidos, setores sociais e confissões religiosas, a ABRACCI está crescendo ininterruptamente.

Um dos desafios mais difíceis que ela está pretendendo enfrentar é o da cultura da corrupção. Depois de séculos de uma corrupção que muitos consideram endêmica, o desafio de uma mudança cultural, mesmo no comportamento de cada pessoa, é efetivamente enorme.

O ninho da serpente

Outra dessas iniciativas se desenvolveu nos últimos dez anos: o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE.7 Ele enfrenta o que parece esconder o ninho da serpente: o poder legislativo brasileiro. 
O Executivo não pode mexer uma palha sem autorização legislativa. O poder maior está, portanto, no Parlamento. Um tem a chave do cofre, o outro o segredo com o qual a chave pode ser usada, que é a lei orçamentária. Isso é bom numa democracia não parlamentarista como a brasileira, em que o Executivo é de um só partido, ou de um conjunto de partidos que se aliaram para ganhar a eleição, enquanto o Parlamento tem dentro dele, pelo menos teoricamente, a representação horizontal, não piramidal, de todos os interesses da sociedade. Por isso é ele que deve decidir em nome do país como um todo, por maioria e não por imposição de ninguém.

Ora, todo esse poder do nosso Parlamento é extremamente cobiçado por quem queira, em benefício próprio, chantagear o Executivo ou empresas que dependam das leis que regulam seu funcionamento ou liberam recursos do governo.

Nos municípios, quase faz parte do folclore local os vereadores entrarem pobres e saírem ricos. Mais ainda quando se associam aos prefeitos, fechando seus olhos fiscalizadores para que estes também possam enriquecer. Imagine-se o funcionamento dessa relação em nível estadual e federal, onde os valores em jogo são muito maiores.8

Trata-se, de fato, de um mecanismo de corrupção quase perfeito para o Executivo que se dispõe a “comprar” votos para obter as autorizações legais de que necessita. É o famoso “é dando que se recebe”9. Disso não podem senão surgir os múltiplos tipos de “mensalões”10.

Foi pena que a esquerda que tomou o poder tenha perdido uma grande oportunidade de sanear nossos costumes políticos. É bem verdade que, por ser de esquerda, esse governo se tornava, sem maioria no Congresso, muito vulnerável, podendo até ser derrubado. Mas ele embarcou alegremente na dinâmica perversa dessa cultura política, sem questioná-la em nada, por influência dos seus membros mais pragmáticos, a pretexto de obter a chamada “governabilidade”11.

O governo anterior, que já não tinha tido nenhum constrangimento em ser “politicamente realista”, conseguiu até, em ação escandalosa, um segundo mandato.12 Deu-se, portanto, uma simples continuidade a essa cultura.13 Por outro lado, fiel às suas alianças, necessárias para a “governabilidade”, mas incompreensíveis para os comuns dos mortais, o governo vem demonstrando extrema condescendência com as práticas de corrupção de seus aliados14.

Tudo isso tem um enorme efeito demonstrativo. Mas o pior é que continua pairando no ar a impressão antiga e generalizada de que política é mesmo coisa suja. Menos pessoas “do bem” se interessam em prestar à coletividade o serviço da representação,15 para fortalecer a bancada dos bem-intencionados que, apesar de tudo, existe e luta, nos diversos partidos, pela dignidade de seus mandatos16.

Compra de votos e reforma política

O MCCE quer ir mais além do que os cidadãos podem fazer ao escolherem com cuidado seus representantes, quer enfrentar essa doença com a pressão da sociedade que reage à deterioração, pela corrupção, das funções democráticas.

Ele surgiu a partir do sucesso, em 1999, de uma Iniciativa Popular de Lei17 – instrumento de participação popular criado pela Constituição de 198818 – que resultou na Lei 9840, que pune o crime da compra de votos. Seu primeiro objetivo foi fiscalizar a aplicação da nova Lei, a ser feita pelas organizações que colheram as assinaturas para a Iniciativa Popular, com o lema “voto não tem preço, tem consequências”. E em abril de 2008 lançou uma nova Iniciativa Popular de Lei, que exige Ficha Limpa para os candidatos, levada ao Congresso em setembro de 200920, aprovada em 22 semanas pela Câmara dos Deputados e em uma semana pelo Senado21.

A experiência de diálogo do MCCE com parlamentares que honraram seus mandatos no processo de aprovação da Lei da Ficha Limpa parece ter trazido um pouco mais de brilho à luz da esperança que surge com a participação ativa da sociedade na vida política. Já se pode pensar em uma nova Iniciativa Popular, desta vez nascendo do aprofundamento do diálogo entre representantes e representados, para que se dê mais um passo na reforma política de que o Brasil está mais do que necessitado22, mas que só será plenamente possível com uma renovação qualitativa efetiva de nosso Congresso. Temos todos o direito de sonhar…

Chico Whitaker é membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, e do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. (2010)

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